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O recente posicionamento do Carf acerca da tese do ‘real adquirente’

Fonte: Jota
Por: Tiago Moreira Vieira Rocha, Geraldo Djehdian Neto, Arthur Litz Gonçalves Toledo

O aproveitamento fiscal do ágio gerado em operações societárias tem sido, há anos, um tema de intenso debate entre os contribuintes e o fisco brasileiro, resultando em discussões bilionárias dentro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

O ágio, definido em linhas gerais como o sobrepreço pago por uma pessoa jurídica na aquisição de uma participação societária, é calculado comparando-se o preço pago na transação com o valor do patrimônio líquido da empresa investida, proporcionalmente ao investimento realizado.

A principal vantagem do ágio reside na possibilidade de exclusão deste valor da base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSL) da entidade sucessora após a confusão patrimonial entre a sociedade investidora e a investida, como ocorre em operações de incorporação. Essa exclusão pode ser feita à razão de 1/60 por mês, resultando em uma economia fiscal significativa.

Um cenário recorrente nos debates do Carf envolve empresas brasileiras que, após receberem aportes de capital de acionistas estrangeiros, utilizam esses recursos para adquirir investimentos em outras sociedades brasileiras, pagando ágio no processo.

As autoridades fiscais normalmente argumentam que a empresa investidora brasileira não seria a “real adquirente” do investimento, mas apenas um “canal de passagem” dos recursos financeiros de seu acionista estrangeiro, o qual, na visão do fisco, seria a verdadeira investidora.

No entendimento das autoridades fiscais, tais aquisições somente teriam sido realizadas pela sociedade brasileira para viabilizar o reconhecimento e posterior aproveitamento fiscal do ágio, pois, se a aquisição tivesse sido realizada pela sua acionista estrangeira (que efetuou o aporte de capital), a transação não teria resultado no registro de ágio aproveitável fiscalmente no Brasil.

Do outro lado, os contribuintes sustentam que a origem dos recursos empregados para a aquisição não deve afastar a condição de “real adquirente” da empresa brasileira que recebeu esses recursos de sua acionista e efetuou a compra da participação societária.

Em especial, os contribuintes sustentam que as normas aplicáveis não preveem o conceito de “real adquirente” nem vedam o reconhecimento de ágio em operações realizadas com o uso de recursos originalmente obtidos via aportes de capital.

Os contribuintes costumam ressaltar que as pessoas jurídicas precisam obter recursos para o desenvolvimento de suas atividades, e a sua obtenção junto aos seus sócios corresponde à forma mais comum de financiamento no meio empresarial, não sendo capaz de desqualificar a empresa que efetivamente desembolsou esses recursos como a real investidora.

A complexidade das operações empresariais e a variedade de estruturas societárias têm aprofundado essa controvérsia, levando a decisões emblemáticas tanto no Carf quanto na Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), refletindo uma luta entre a liberdade empresarial e o rigor fiscal.

As discussões de mérito sobre esse tema têm sido desafiadoras e o seu resultado, muitas vezes, está diretamente relacionado à substância e às características específicas da operação e da entidade brasileira que realizou o investimento.

De fato, existem decisões desfavoráveis sobre o tema, especialmente no caso de sociedades adquirentes que não possuem substância econômica e atividade operacional própria[1].

Não obstante, também é possível localizar casos recentes favoráveis aos contribuintes, que afastaram autuações em situações nas quais empresas brasileiras adquiriram investimentos com ágio utilizando recursos originalmente transferidos por controladoras estrangeiras. Diante de sua relevância, cabe examinar essas decisões em maiores detalhes.

Em uma decisão de novembro de 2024, o Carf rejeitou as alegações do fisco e decidiu que: (i) a mera origem dos recursos utilizados para o pagamento do preço de aquisição não poderia deslocar a condição de “real adquirente” à controladora estrangeira, que transferiu esses recursos à empresa brasileira que adquiriu o investimento e, assim, (ii) a tese do “real adquirente” não possui embasamento legal (Acórdão nº 1302-007.289, caso Elektro)[2].

Como esclarecido pelo conselheiro relator Henrique Nimer Chamas nessa ocasião, “a norma tributária, por sua vez, não restringe o ágio à sociedade que origina os recursos financeiros utilizados na aquisição”, de modo que “a obtenção de recursos por uma sociedade sediada no Brasil junto ao seu controlador no exterior não implica assumir que a empresa estrangeira é a real adquirente das participações societárias”.

O mesmo raciocínio foi adotado pelo Carf em 15/8/2024, quando restou decidido que a tese do real adquirente não possui fundamento legal, salvo se comprovada a prática de simulação: “a tese do ‘real adquirente’, que busca limitar o direito à dedução fiscal do ágio apenas na hipótese de existir confusão patrimonial entre a pessoa jurídica que disponibilizou os recursos necessários à aquisição do investimento e a investida, não possui fundamento legal, salvo quando caracterizada hipótese de simulação, o que não se revela no caso” (Acórdão nº 1302-007.232, caso L’Oréal).

Segundo o conselheiro relator, a interpretação das autoridades fiscais contraria a própria personalidade jurídica e autonomia patrimonial das pessoas jurídicas e, se levada a cabo, resultaria no equivocado entendimento de que todos os atos de pessoas jurídicas são praticados pelos seus sócios[3].

No Acórdão 1101-001.372, também de 15/8/2024 (caso GWUP), o Carf afirmou que o contribuinte tem liberdade para decidir a forma de financiamento do preço de aquisição do investimento (seja por meio de recursos próprios, aumentos de capital efetuadas pela sua acionista, seja por tomada de empréstimo junto a instituições financeiras), não cabendo ao fisco questionar a opção selecionada[4].

Na mesma linha, em 11/4/2024, o Carf reconheceu que a origem dos recursos utilizados para o pagamento do preço de aquisição da participação societária não pode ser utilizada como argumento para negar o direito do contribuinte ao aproveitamento fiscal do ágio gerado na transação (Acórdão 1401-006.935, caso Serasa)[5].

Em outra decisão, de março de 2024, o Carf confirmou que: “não encontra respaldo na legislação a tese de que, em qualquer circunstância, deve ser considerada “real investidora” a pessoa jurídica do grupo de quem se originaram os recursos financeiros utilizados na aquisição. Não havendo norma dispondo de forma diferente, é de se considerar como ‘real adquirente’, em um negócio de compra e venda, a pessoa que recebe o bem em troca do pagamento do preço” (Acórdão 1201-006.273, de 12/3/2024, caso Via Varejo).

O mesmo entendimento já foi adotado pela CSRF, que reconheceu no Acórdão 9101-006.894 (caso Arcelormittal)[6] que “a rastreabilidade da origem dos recursos é irrelevante para fins de reconhecimento do direito à amortização fiscal do ágio”, visto que o destinatário da norma jurídica que autoriza o reconhecimento e aproveitamento fiscal do ágio é “aquele que detém o investimento adquirido com ágio (ou a adquirida quando da incorporação reversa (…) desvinculando-se cabalmente da fonte dos recursos empregados na aquisição pela holding”.

Nesse contexto, considerando a importância desse assunto para investidores estrangeiros e contribuintes integrantes de grupos multinacionais, é importante que a CSRF e o Poder Judiciário examinem esses precedentes administrativos ao analisarem a possibilidade de aproveitamento fiscal de ágio gerado em aquisições efetuadas com recursos aportados pelos acionistas da entidade adquirente.

O esclarecimento desse tema revela a necessidade de alinhamento entre as práticas empresariais e as interpretações fiscais, promovendo um ambiente mais equilibrado e previsível para os investidores, estrangeiros e brasileiros, no Brasil.


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