Por: Carlos Augusto Daniel Neto
Fonte: Conjur
O IRRF sob análise nesta série de artigos é tão cercado de problemáticas, que mesmo a sua especialização para o seu julgamento no Carf é potencialmente polêmica.
Desde a edição da Portaria MF nº 343/15 (Ricarf/15), a especialização para julgar o IRRF é compartilhada entre a 1ª e a 2ª Seções do Carf. Cabia à 1ª Seção o julgamento dele apenas quando antecipação do IRPJ ou reflexo deste, enquanto cabia à 2ª Seção as demais hipóteses, tanto que há acórdãos após 2015 declinando a competência de julgamento para a 2ª Seção, por não se tratar de reflexo (e.g. ac. 1201-001.420).
Com a Portaria MF nº 329/2017 (4/6/2017), ampliou-se a especialização da 1ª Seção, que passou também julgar as autuações autônomas do IRRF do artigo 61 da Lei nº 8.981/95 (alterando-se o artigo 2º, III, do Anexo 2 do Ricarf/15). Entretanto, a portaria não trouxe qualquer tipo de alteração ou restrição à especialização da 2ª Seção para essa matéria, mantendo-se a sua redação original (artigo 3º, II do Anexo 2 do Ricarf/15), cujo teor alcançava a exação em análise.
Com essa inclusão, a especialização para referida exação passou a ser compartilhada pelos dois órgãos, tendo sido proferidos pela 2ª Seção diversos acórdãos sobre essa matéria, de 2017 até agora, muitos deles sorteados aos relatores logo após a referida portaria (e.g. ac. 2401-005.304 e 2401-005.303 – 6/3/18, 2202-004.737 – 10/8/2018, 2401-007.229 – 3/10/2019, 2202-008.539 – 12/8/2021, 2402-006.793 – 18/1/2019).
Não há qualquer impeditivo regimental para que haja eventual superposição entre as matérias julgadas pelas Seções (pelo contrário, o próprio Ricarf considera essa possibilidade), pois se trata de uma separação baseada na especialização técnica para análise, dentro de um mesmo Tribunal. O próprio Ricarf, a esse respeito, prevê a possibilidade de prorrogações temporárias das especializações entre as Seções.
A consequência prática disso é o fato de que as especializações, ainda que distribuam a competência dentro da estrutura do Carf, não são “exclusivas” nem “autorretratéis”, i.e., elas não se restringem automaticamente quando adjudicadas a outras Seções, dependendo de alteração legislativa específica também para a sua supressão (como ocorreu, por exemplo, com o novo regimento).
Pois bem. Posteriormente, a Portaria Carf nº 146/2018 estendeu para a 1ª Seção a competência para o julgamento das demais matérias de IRRF, quando o sujeito passivo fosse pessoa jurídica. Portanto, a partir de 13/12/2018, a 1ª e 2ª Seção passaram a ter, ainda que temporariamente, competência para julgar todas as questões relativas ao IRRF (com a restrição subjetiva para a 1ª Seção). Essa portaria foi expressamente revogada em 17/10, pela Portaria Carf nº 1.642/24.
A propósito, a Portaria CARF 22.564/20 estendeu temporariamente à 2ª CSRF a competência para processar e julgar as matérias afeitas à 1ª CSRF do Carf.
Com a Portaria MF nº 1.634/2023 (vigente a partir de 05/01/24, Ricarf/24), a distribuição da competência foi novamente alterada, com a restrição da competência da 2ª Seção apenas para os processos de IRRF cujo mérito discuta a natureza de rendimentos sujeitos à Dirpf, bem como nas hipóteses do art. 74 da Lei nº 8.383/91. Com isso, a 1ª Seção passou a ter competência para o julgamento dos demais casos de IRRF, com exclusividade.
A esse respeito, há um ponto digno de nota: com a edição do Ricarf/24, as Portarias Carf nº146/18 e 22.564/20, na condição de normas cujos efeitos se operam por remissão a dispositivos do Ricarf/15, deveriam ter sido tacitamente revogadas. A própria Portaria 146/18 deixa de fazer sentido lógico, à luz do novo regimento, tanto que posteriormente foi revogada.
O novo Ricarf altera o arcabouço ao qual as portarias se referiam, de modo que, em havendo alteração na repartição de especializações, cessa a validade de todas as regras que dispunham sobre elas, devendo o Carf, caso pretenda restabelecê-las, editar novas portarias nesse sentido, como o fez com a Portaria nº 1.642/24 (para lançamentos de contribuição previdenciária decorrentes da exclusão do Simples).
Portanto, a especialização compartilhada da 1ª e 2ª Seções para o julgamento de processos autônomos de IRRF do artigo 61 perdurou da vigência da Portaria MF nº 329/2017 até o início da vigência da Ricarf/24. Atualmente, permanece vigente apenas a prorrogação de competência para a 2ª CSRF, por força da Portaria Carf 22.564/20, cuja validade é questionável, tendo em vista que foi elaborada considerando a repartição de especializações do Ricarf/15.
Essa questão irá se conectar à seguinte, como se demonstrará adiante.
Uma questão bastante discutida no Carf é a contagem do prazo decadencial, em relação ao fato gerador do IRRF, qual seja, a realização de pagamento a beneficiário não identificado ou sem causa.
O ponto de partida diz respeito a ser o IRRF um tributo sujeito a lançamento por homologação ou de ofício, o que implicaria, respectivamente, a aplicação do artigo 150, §4º (contagem a partir da data da ocorrência do fato gerador) ou 173, I do CTN (primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado).
Apesar da questão ser recorrente nos acórdãos, o que se verifica é que quase não existia dissidência a respeito do regime de lançamento por homologação, posição com a qual concordamos e desconhecemos haver divergências na jurisprudência atual. Ora, o contribuinte pode, ao optar por realizar um pagamento a beneficiário não identificado, declará-lo em sua DCTF (código 5217/01), recolhendo o IRRF devido e resguardando-se contra qualquer questionamento da fiscalização – como sói ocorrer com qualquer tributo lançado por homologação.
O busílis da discussão, naquele momento, era a identificação de circunstâncias que, conforme o próprio artigo 150, §4º do CTN, permitiram postergar a contagem para o exercício seguinte, adotando a sistemática do artigo 173, I. Nesse sentido, a discussão girava em torno da comprovação de dolo, fraude ou simulação, para protrair o lustro decadencial (e.g. ac. 106-15.344, 3301.00-070, 3401-00.041, 104-22.025, 103-22.712 etc.).
A partir de 2009, o debate foi consideravelmente alterado com a votação, pelo STJ, do Tema Repetitivo 163 (REsp 973.733/SC), que determinou (de maneira vinculante para o Carf) a adoção do prazo do artigo 173, I, do CTN, nas hipóteses dos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, para os quais não tenha ocorrido o pagamento antecipado da exação. Desse modo, passou-se a ser praticamente irrelevante a ocorrência de dolo, fraude ou simulação, bastando a demonstração de inocorrência de qualquer pagamento antecipado (e.g. ac. 9202-02.113, 9202-02.327, 9202-004.247, 1301-001.598, 9101-003.231 etc.).
Com a consolidação desse entendimento — e aqui há um ponto que merece atenção — a 1ª Câmara Superior de Recursos Fiscais (e não o Pleno) aprovou, em 03/09/2018, a 10ª Proposta, convertida na Súmula Carf nº 114, com o seguinte texto: “O Imposto de Renda incidente na fonte sobre pagamento a beneficiário não identificado, ou sem comprovação da operação ou da causa, submete-se ao prazo decadencial previsto no artigo 173, I, do CTN”, com os seguintes acórdãos precedentes:
Acórdãos Precedentes: 1101-00.622, de 23/11/2011; 1402-00.320, de 11/11/2010; 2202 01.975, de 15/08/2012; 9101-00.773, de 14/12/2010; 1103-000.904, de 06/08/2013; 1301-001.544, de 03/06/2014; 1302-001.857, de 04/05/2016; 2202-002.561, de 18/02/2014; 2202-002.804, de 10/09/2014; 2301-004.531, de 08/03/2016.
Há duas coisas interessantes de a serem observadas aqui:
I) entre os acórdãos precedentes constam decisões oriundas da 1ª e 2ª Seções (inclusive anteriores à Portaria MF nº 329/2017);
II) todos os acórdãos se baseiam no fato de que a ausência de recolhimento pelo contribuinte atrairia a necessidade de um lançamento de ofício, aplicando-se a contagem do artigo 173, I, com referência ao Tema 163 em alguns deles;
Em relação ao primeiro ponto, já se demonstrou que a especialização para julgamento do IRRF do artigo era compartilhada pela 1ª e 2ª Seções do Carf, especialmente a partir da Portaria MF nº 329/2017, em que ambas detinham competência para a análise autônoma dessa matéria. Uma evidência disso é a grande quantidade de acórdãos julgados pelas câmaras baixas de ambas as Seções, nos anos que antecederam a aprovação da súmula.
Ora, a aprovação de súmulas sobre matéria submetida a duas ou mais turmas da CSRF é competência exclusiva do Pleno do Carf. Entretanto, a súmula nº 114 teve a sua aprovação por votação exclusivamente da 1ª CSRF, inexistindo qualquer ato posterior do Pleno de ratificação ou de nova votação do seu teor.
Com a devida vênia, tendo em vista a existência de especialização compartilhada ordinária das Seções (i.e., não decorrente de prorrogações temporárias), a referida súmula possui vício formal de natureza subjetiva na sua aprovação, que se deu por órgão incompetente para tanto, contrariando o artigo 72, §1º da Portaria MF nº 343/2015:
Art. 72 (…) § 1º Compete ao Pleno da CSRF a edição de enunciado de súmula quando se tratar de matéria que, por sua natureza, for submetida a 2 (duas) ou mais turmas da CSRF.
Ademais, não nos parece que a concentração posterior da especialização na 1ª Seção, com a edição do Ricarf/24, tenha o condão de validar, a posteriori, uma súmula que nasceu inválida. O racional é, mutatis mutandis, o mesmo adotado pelo STF no RE 390.840, ao rechaçar a “constitucionalização superveniente” do artigo 3º, §1º da Lei nº 9.718/98.
Essa questão é relevante, pois há, em uma breve pesquisa no VER, mais de uma centena de acórdãos que mencionam a referida súmula em seu teor, muitas vezes como razão vinculante para a decisão (sem margem para a sua não aplicação, por força do Ricarf). Uma vez reconhecido que se trata de uma súmula eivada de nulidade, quaisquer decisões fundamentadas exclusivamente nela serão igualmente prejudicadas, pelo vício nas suas respectivas motivações.
Para além disso, a existência da súmula já mitiga o alcance da cognição dos julgadores, vinculando-os regimentalmente ao seu conteúdo normativo sob pena de perda de mandato. Em sendo a referida súmula inválida, essa restrição implica em ofensa ao devido processo legal e ao contraditório e ampla defesa substanciais.
Idêntico problema alcança também os diversos despachos de inadmissibilidade de recursos especiais, que visavam discutir a decadência a respeito do IRRF, e cuja admissão foi recusada com fundamento no indigitado verbete.
Como esclarecido acima, entendemos que a referida súmula seria nula, por vício no seu emissor. Entretanto, devemos avançar sobre um segundo ponto, qual seja, a ratio decidendi comum dos seus precedentes, baseados na ausência de pagamento, ainda que parcial, invocando em alguns deles o Tema Repetitivo 163.
Aqui, parece-nos que a redação da súmula alcançou muito mais do que a sua ratio, e para isso damos dois exemplos que correspondem a “pagamentos parciais” e que justificariam um distinguishing na sua aplicação.
O primeiro é a hipótese de o pagamento realizado também estar sujeito ao IRRF exclusivo na fonte, como na hipótese de certas remessas ao exterior, JCP, prêmios etc. Em todos esses casos, o pagamento estaria devidamente declarado e oferecido à tributação, ainda que sob uma alíquota inferior aos 35% do artigo 61 da Lei nº 8.981/95 – entretanto, isso não desqualificaria o fato de que haveria uma declaração do fato gerador e um pagamento antecipado a ser homologado pela fiscalização, atraindo a aplicação do artigo 150, §4º do CTN, para a contagem do prazo decadencial.
O segundo exemplo se baseia na posição assumida pelo Carf no acórdão 9101-007.068 (já analisado em outra coluna), que reconheceu o direito de o contribuinte de abater do IRRF (do artigo 61) os valores que foram objeto de retenção na fonte como antecipação, nos pagamentos realizados. No entendimento vencedor, ambas as cobranças atingem uma mesma materialidade, razão pela qual o valor já pago deveria ser deduzido da cobrança realizada. Na prática, o entendimento reconhece eventuais retenções na fonte, relativamente a um pagamento objeto de autuação posterior, deveria ser reconhecido como um pagamento parcial relativo àquele fato gerador, tanto que a compensação é autorizada.
Os exemplos acima são claros em demonstrar a possibilidade da existência de pagamentos parciais relativamente aos fatos geradores do IRRF do artigo 61, afastando a ratio dos acórdãos precedentes que formaram a Súmula nº 114, e exigindo prova específica da ocorrência de simulação, fraude ou dolo, para que se adote o dies a quo estabelecido no artigo 173, I, do CTN.
Na coluna de hoje, buscamos demonstrar que mesmo aspectos aparentemente simples, como a competência, se tornaram excessivamente complexos em relação ao IRRF do artigo 61.
A sucessão de portarias ministeriais a respeito gerou, temporariamente, um período de especialização cumulativa entre a 1ª e 2ª Seções, por ter ampliado a especialização daquela, sem reduzir o desta, após a edição da Portaria MF nº 329/2017. Essa situação, inclusive, tem o potencial de impactar a validade da Súmula nº 114, que deveria, em nosso entender, ter sido aprovada pelo Pleno do Carf.
A respeito do alcance da súmula, apontamos também a necessidade de se realizar o distinguishing diante de certas situações que extrapolam a ratio decidendi dos seus acórdãos precedentes, por qualificarem recolhimentos parciais relativos à materialidade alcançada pela exação.
Como já temos apontado em diversos artigos, o artigo 61 da Lei nº 8.981/95 é fecundo em controvérsias e desafia sempre novas análises.