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Duplo grau recursal administrativo em matéria aduaneira

Fonte: Jota
Por Carlos Henrique Bechara e Felipe Bernardelli de Azevedo Marinho

Segundo dados do Banco Mundial obtidos em 2015, o Brasil seria o segundo país do mundo mais fechado para o comércio exterior, superando apenas Myanmar. De acordo com esse estudo, a alta carga tributária incidente sobre a cadeia de fornecimento de produtos para operações de importação e exportação, bem como a complexidade da legislação que regulamenta a matéria seriam as causas de o Brasil ocupar essa indesejada posição.

Diante da relevância do tema, a Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) realizou importante e concorrido evento, no dia 7.8, tratando exclusivamente de temas envolvendo a legislação aduaneira, que é tida como um dos gargalos brasileiros para o aprimoramento do comércio exterior.

O evento contou com a participação de nomes de peso tanto da iniciativa privada quanto do setor público, como Diego Diniz Ribeiro, Everardo Maciel, Gisele Bossa, José Fernandes do Nascimento, Luiz Paulo Romano, Rosaldo Trevisan, Tatiana Belisário e Thais de Laurentiis Galkowicz.

Discutiu-se no webinar da ABDF a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), em casos de alegação de interposição fraudulenta na importação e na exportação, a aplicabilidade da nova regra que afastou o voto de qualidade para processos envolvendo discussão de matéria aduaneira no CARF e a conversão da pena de perdimento em multa no valor total das mercadorias. Ao final, travou-se profícuo debate sobre a imediata necessidade, ou não, de atualização, ou simplificação, da legislação aduaneira.

O panorama traçado pelos debatedores é crítico. Se, por um lado, o país demonstra enorme potencial de expansão na área do comércio exterior, com transações cada vez mais sofisticadas e com atuação de novos e variados agentes — o que poderia representar aumento de divisas internacionais e impulsionar uma retomada econômica –, por outro, apresenta diversos entraves burocráticos que emperram essa expansão.

Dentre esses entraves está a ausência de uma legislação aduaneira mais eficiente, que traga certeza aos administrados quanto à sua aplicação em determinadas operações de comércio exterior. Como debatido no evento organizado pela ABDF, o motivo para essa falta de certeza na aplicação da legislação está na ausência de uma reforma estruturante da norma.

Explica-se. Durante anos, a legislação aduaneira acabou sendo emendada com a finalidade de se solucionar problemas pontuais identificados pela administração pública, como, por exemplo, em questões envolvendo alegação de interposição de terceiros em operações de comércio exterior com emprego de fraude ou simulação, ou, ainda, quando a legislação foi alterada para convolar a pena de perdimento em multa pecuniária quando o produto submetido a essa pena já tiver sido comercializado ou consumido, equivalendo essa multa ao valor integral do bem.

Por consequência, o que se criou foi uma colcha de retalhos, ainda incompleta, com frestas e não harmonizada, o que acaba gerando insegurança aos que atuam no comércio exterior, pois o que existe hoje é um novelo de leis, decretos, portarias e instruções normativas, que, por vezes, até se contradizem.

Além disso, como o comércio exterior envolve diversas frentes de atuação por parte dos órgãos públicos, visando o controle aduaneiro, essas normas estão espalhadas por diferentes setores da administração pública, o que agrega ainda mais incerteza ao tema.

Um exemplo disso é que o desembaraço aduaneiro é regulado tanto pela Receita Federal do Brasil (RFB), quanto pela Subsecretaria de Operações de Comércio Exterior (SUEXT) — que é órgão subordinado à Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais (SECINT), e não à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.

Contudo, apesar da ausência de normas estruturantes e centralizadas que permitam maior clareza para aqueles que atuam no setor, o Governo Federal vem buscando se alinhar às práticas internacionais de comércio exterior por meio de dois pilares legislativos principais, o que poderá ser um alento para os que realizam atividades de importação e de exportação de produtos e o que finalmente poderá trazer maior dinamismo ao país.

O primeiro pilar desse alinhamento foi a implementação do Acordo sobre Facilitação do Comércio finalizado em 2013 no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Esse acordo prevê dispositivos contendo boas práticas dos órgãos públicos, especialmente a publicação de normas que sejam menos restritivas ao comércio internacional, facilitando a troca de mercadorias entre os diversos países signatários, entre eles o Brasil.

Segundo dados da OMC, a simplificação trazida por esse acordo poderá aumentar as exportações mundiais em até US$1 trilhão por ano, o que abriria uma boa oportunidade de inserção da economia brasileira nesse mercado internacional altamente competitivo e rentável.

O segundo pilar foi a internalização da Convenção de Quioto, revisada por meio da edição do Decreto nº 10.276, em 13 de março de 2020. Esse decreto é um marco importante na simplificação e na harmonização da legislação aduaneira brasileira com as práticas internacionais.

Dentre os pontos relevantes do Decreto nº 10.276/2020 está o seu capítulo 10, que trata de recursos em matéria aduaneira. Nesse trecho, a norma prevê a possibilidade de interposição de recurso administrativo contra qualquer decisão da administração aduaneira. Além disso, esse recurso precisará ser processado e julgado por autoridade independente.

Essa possibilidade recursal é muito bem-vinda e acaba por exaltar os princípios da ampla defesa e do contraditório, sedimentados na Constituição Federal, mas que era deixado de lado em determinadas matérias aduaneiras. Um exemplo intensamente questionado pelos administrados diz respeito à análise da validade da aplicação da pena de perdimento na via administrativa, pois a impugnação apresentada contra o auto de infração que aplica a pena era julgada em instância única dentro da própria RFB. É claro que, nesses moldes, não há julgamento isento e imparcial sobre a validade da pena aplicada.

Porém, apesar de a Convenção de Quioto vir com o objetivo de simplificar as regras em matéria aduaneira, mal foi internalizada no Brasil e já está no meio de disputa judicial, entre iniciativa privada e setor público, acerca do início de seu prazo de vigência.

Por um lado, alega-se que diversos são os dispositivos legais autoaplicáveis e com vigência imediata, previstos no Decreto nº 10.276/2020, na medida em que já estão alinhados ou possuem semelhanças com normas já existentes no Brasil. Dentre esses dispositivos está a previsão do duplo grau recursal em matéria aduaneira.

O fato é que já existe um órgão administrativo bem estruturado e independente da administração aduaneira que pode apreciar recursos envolvendo diversos temas de comércio exterior, conforme determinado pelo Decreto nº 10.276/2020. Esse órgão é o CARF, que possui composição paritária e, consequentemente, não está vinculado à administração aduaneira.

Além disso, a Terceira Seção do CARF possui competência para processar e julgar recursos envolvendo temas aduaneiros, inclusive tratando de regimes especiais e da própria validade da multa substitutiva à pena de perdimento.

O duplo grau recursal em matéria aduaneira, previsto no Decreto nº 10.276/2020, poderia e deveria ser imediatamente colocado em prática por meio da aplicação dos dispositivos do Decreto nº 70.235/1972, que regulamenta o processo administrativo fiscal e prevê o cabimento de recurso ao CARF, ao menos para aquelas matérias já apreciadas pelo órgão de primeira instância, como é o caso da pena de perdimento.

O Decreto nº 10.276/2020 seria, portanto, autoaplicável em relação aos dispositivos que tratam do duplo grau recursal, já que existe norma capaz de satisfazer o disposto no tratado firmado pelo Brasil.

Por outro lado, as autoridades fiscais relutam em concordar com esse posicionamento. Na visão da administração pública, deveria ser respeitada a longa vacatio legis de 36 meses prevista no artigo 13 da Convenção de Quioto.

Em outras palavras, todos os dispositivos previstos na Convenção de Quioto precisariam aguardar 36 meses da edição do Decreto nº 10.276/2020 para entrarem em vigor e adquirirem plena eficácia, inclusive a norma que trata do cabimento de recurso voluntário contra decisão em matéria aduaneira proferida em única instância.

Apesar de existirem decisões judiciais liminares apontando para os dois lados, nos parece fazer muito mais sentido a prevalência da tese que sustenta a aplicabilidade imediata da Convenção de Quioto no que se refere ao duplo grau recursal em matéria aduaneira.

Ora, não é razoável aguardar um período de 36 meses para se invocar um dispositivo legal que finalmente insere a ampla defesa e o contraditório em matéria aduaneira, ainda mais existindo órgão administrativo especializado, estruturado e plenamente capaz de julgar de imediato qualquer matéria aduaneira, como é o caso do CARF.

Nesse sentido, cabe ressaltar também que a nova possibilidade de interposição de recurso ao CARF em casos não antes previstos em nossa legislação em nada viola direitos e garantias da administração pública, já que o órgão julgador já está constituído e as sanções em matéria aduaneira são normalmente aplicadas após o término do respectivo processo administrativo. Ou seja, haveria apenas a adição de uma etapa procedimental, muito salutar por sinal, que garantiria o amplo direito de defesa do contribuinte e evitaria que determinados temas fossem, de forma prematura, levados à apreciação do poder judiciário, que, como sabido, já se encontra devidamente abarrotado de processos para apreciar e julgar.

Além disso, em momento econômico tão delicado como o atual, com o país vivenciando déficit orçamentário, não faz qualquer sentido a criação de novo órgão administrativo independente para apreciar e julgar a matéria aduaneira, se já existe um colegiado, independente e técnico, capaz de exercer essa função.

Não custa lembrar que a atuação da administração pública está sempre balizada pelo princípio da eficiência. Assim, não nos parece eficiente defender um aumento de gastos públicos durante um período de crise econômica, com a criação de um órgão que atuará em matéria que hoje já pode ser apreciada pelo CARF. É nítida a sobreposição de competências e não é justificável o aumento de gastos.

Por último, vale uma analogia com a questão da vigência do Código Tributário Nacional (CTN), que foi editado sob a égide da Constituição Federal de 1946 e sob a forma de lei ordinária, em 1966.

Ocorre que, a partir da Constituição de 1967 – o que foi posteriormente ratificado pela Constituição de 1988 –, o próprio constitucional passou a determinar que as normas gerais de Direito Tributário deveriam ser reguladas por lei complementar, para fins de unicidade e até pela importância do tema.

Mesmo tendo sido editado como lei ordinária em 1966, quando ainda nem havia a figura da lei complementar, o CTN, por ter sido tão bem elaborado e ter tratado com tanta propriedade as normas gerais de Direito Tributário, permanece em vigor até hoje, exercendo plenos efeitos, tendo sido inclusive expressamente recepcionado pelo Supremo Tribunal Federal como um Código com status de lei complementar, sendo oponível a todos como tal e só podendo ser alterado por lei complementar.

Em paralelo, voltando para o caso da Convenção de Quioto, as normas existentes precisam ser avaliadas e, na hipótese de serem compatíveis com a lei estruturante, devem ser imediatamente aplicadas.

Assim, em tempos de discussão sobre reformas estruturantes, é positivo e salutar que algo tão significativo como a Convenção de Quioto tenha sido internalizado em nossa legislação pelo Governo Federal. Ressalte-se mais uma vez que se trata de marco importante na simplificação e na harmonização da legislação aduaneira brasileira com as práticas internacionais. Contudo, o país não pode esperar 36 meses para que dispositivos passem a ter eficácia, ainda mais quando existem normas internas capazes de recepcionar trechos dessa reforma estruturante trazida pela Convenção de Quioto.

É por isso, em nome do bom senso e em homenagem ao princípio da eficiência da administração pública, que os trechos da Convenção de Quioto já recepcionados pela legislação interna devem ser considerados autoaplicáveis e de imediato, como, por exemplo, na parte que trata do duplo grau recursal em matéria aduaneira. Trata-se apenas de adequação da nossa legislação com relação ao que já existe nos outros países.


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