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Desoneração do IRPF e justiça tributária

Por: Sergio André Rocha
Fonte: Conjur

Uma das maiores virtudes humanas é a coerência, e talvez seja ela a mais ausente no debate público em geral.

Em minhas aulas para os alunos e alunas de graduação na Uerj, eu costumo, desde o Direito Financeiro I, chamar a atenção para a centralidade dos debates financeiro e tributário na vida pública brasileira contemporânea. Eu arriscaria dizer que todas as grandes pautas do governo atual foram e são pautas financeiras ou tributárias, direta ou indiretamente.

Este fato, que poderia parecer uma patologia a um observador desatento é, em verdade, prova da relevância das finanças públicas nos Estados Fiscais. A tributação exerce um papel central na busca pela solução de muitos dos grandes problemas da atualidade, desde a superação das desigualdades (sociais, de raça, de gênero, etc.) até a defesa do meio ambiente, tornada princípio constitucional tributário com a edição da Emenda Constitucional nº 132/2023 (artigo 145, § 3º, da Constituição).

Durante a tramitação da Proposta de Ementa Constitucional nº 45/2019 (PEC 45), eu disse várias vezes que preferia que a reforma do Imposto de Renda fosse feita primeiro. A razão para isso era clara: a reforma da tributação do consumo tinha vários apoiadores no meio econômico. Como tenho ressaltado, um dos seus maiores objetivos era alcançar uma redistribuição do peso relativo dos tributos sobre o fornecimento de bens e serviços. Consequentemente, a reforma tributária do consumo teve vencedores, o que fez com que ela tivesse muitos polos de apoio.

A reforma do Imposto de Renda é bastante diferente neste particular. Por mais que ela possa ter alguns efeitos positivos para as empresas, ela, inevitavelmente, tem que levar carga tributária para aquelas pessoas que se encontram no topo da distribuição de renda no Brasil. Logo, a reforma da tributação da renda terá pouquíssimo apoio dos formadores de opinião – se tiver algum – e dificilmente terá grandes setores econômicos investindo pesadamente em sua aprovação.

Neste texto não vou falar amplamente da reforma do Imposto de Renda, mas focar minha atenção na desoneração daqueles que ganham até R$ 5 mil com a consequente tributação das pessoas com alta renda, que já começou o ano movimentando os debates no Congresso Nacional.

A carga tributária é uma função do gasto público – incluindo o gasto tributário, referente às desonerações fiscais. Sem redução de gastos não é possível considerar uma queda na carga tributária.

O controle do gasto público é um tema que parece fazer parte da pauta diária de todos os programas de notícias. Fazem-se especiais bradando contra a incapacidade, a inabilidade ou falta de interesse do Poder Executivo para a redução de despesas, normalmente com referências à manutenção de políticas públicas que alcançam a base da distribuição de renda no Brasil.

Contudo, e é aí que a coerência se esfacela, é pequena ou nenhuma a pressão para a redução do gasto tributário. De acordo com os dados da Receita Federal do Brasil, o gasto tributário superou os R$ 500 bilhões em 2024. Um corte de 20% deste valor total entregaria muito mais economia do que cortes em benefícios que atendessem à população mais pobre.

Quantos programas e reportagens sérias vimos nos últimos dois anos sobre este tema? Quantas vezes o “mercado” se organizou para pressionar o governo pela apresentação de um plano de redução do gasto tributário, trazendo aquelas previsões sombrias de fim dos tempos e pressão sobre o câmbio caso não fossem reduzidos os benefícios fiscais que, em um volume gigantesco, nada mais são do que apropriação do orçamento pelo 0,5% mais rico da população?

É muito confortável a posição do legislador. Talvez poucos temas unam a população em todos os espectros políticos quanto a absoluta necessidade de por fim aos chamados “supersalários” do serviço público. O governo enviou o tema ao Congresso para que fosse incluído no tão clamado “ajuste fiscal”, para, logo em seguida, ser desidratado pelo Poder Legislativo.

É esse um comportamento coerente? Um congresso que se recusa a debater uma matéria que é simplesmente questão de observância do princípio da moralidade (artigo 37 da Constituição) tem condições de se apresentar para a sociedade como defensor da austeridade fiscal?

Austeridade fiscal seletiva
Ricardo Lodi Ribeiro, em livro de 2019, falou em austeridade fiscal seletiva. Esta parece ser a questão a ser considerada e com ela retomo o início do artigo. Não é possível um debate público sério sem coerência. Toda discussão tributária encerra um conflito distributivo. Se os recursos são escassos, toda decisão sobre gastar ou não gastar, sobre arrecadar ou não arrecadar, envolve uma decisão distributiva.

Se usarmos a Constituição Federal de 1988 como árbitra desses conflitos distributivos cremos ser claro que as decisões de gasto se legitimam por serem redutoras de desigualdade e beneficiarem principalmente a base da pirâmide da distribuição de renda. Assim sendo, entre o bolsa família e os “supersalários”, não temos dúvidas de que a Constituição pende para a garantia de condições básicas de vida para a população mais pobre e para o corte de privilégios financeiros que, diga-se, já são inconstitucionais.

O problema que se coloca, portanto, não é a austeridade fiscal em si. A questão central é quem serão os vencedores e os perdedores deste conflito distributivo que, em última instância, é uma batalha por fatias do orçamento público com um dos lados só aceitando ajustes fiscais que impactem aqueles que não têm voz no debate público para os contestar. Quando o Congresso Nacional se apresenta como defensor inconteste da austeridade fiscal, mas se recusa a transigir sobre suas emendas parlamentares, ou a avançar em direção à eliminação dos privilégios dos mais ricos, é muito difícil acreditar na sua coerência.

A distribuição da carga tributária
Uma coisa é a carga tributária, outra a sua distribuição. Como apontamos, a própria reforma tributária do consumo pode ser vista como um grande movimento de redistribuição da carga tributária, ou do peso dos tributos sobre decisões de consumo, já que sempre se trabalhou com a premissa de que ela não aumentaria a arrecadação.

Temos dito que um dos grandes protagonistas da reforma tributária foi o princípio da justiça fiscal, incluído explicitamente no § 3º do artigo 145 da Constituição, o qual tem como principal pilar a distribuição da carga tributária segundo o princípio da capacidade contributiva.

O Direito Tributário é essencialmente instrumental. Logo, não é pela via da tributação que se vai aumentar ou reduzir a carga suportada pelos contribuintes. Contudo, se não se tem mecanismos para afetar a carga total, é um dever do Sistema Tributário Nacional assegurar que ela seja distribuída de forma justa. Foi este Congresso Nacional que assim o decidiu ao incluir o princípio da justiça tributária no citado § 3º do artigo 145 da Constituição.

É basicamente desse tema que estamos tratando quando falamos da desoneração do Imposto de Renda sobre rendimentos até R$ 5 mil.

O artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é claro ao estabelecer que a renúncia de receita requer uma medida compensatória. E mais, tal medida não pode vir de uma suposta redução de gastos. O inciso II do § 1º deste artigo não deixa dúvidas de que a medida compensatória deve vir “por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição”.

Em outras palavras, e cortando a demagogia do debate público, simplesmente não é possível – ou não deveria ser possível – conceder a isenção – que parece contar com o apoio da maioria do Congresso Nacional – sem que seja apresentada uma medida compensatória que atue sobre o aumento da receita. Redução de despesas simplesmente não serve.

Assim sendo, eu até poderia respeitar, mesmo discordando, de um congressista que dissesse “este não é o momento para a desoneração do IRPF de quem ganha até R$ 5.000,00”. Esta é uma posição coerente para aqueles que se afirmam “de direita e protetores do equilíbrio fiscal”. Agora, ir para as redes sociais como defensor da isenção, e ao mesmo tempo sustentar que nenhuma compensação na arrecadação é necessária, é um misto de desconhecimento de Direito Financeiro e demagogia.

Não temos sobre a mesa uma proposta concreta de alteração da legislação do Imposto de Renda para comentar. Contudo, por tudo o que foi dito até agora, o conceito da equipe econômica do governo é de que aqueles que ganham até R$ 5 mil sejam desonerados e que os que ganham acima de R$ 50 mil tenham um aumento de tributação.

Da perspectiva de distribuição da carga tributária, parece uma proposta bastante consistente, especialmente se a incidência sobre quem ganha acima de R$ 50 mil for progressiva, elevando-se conforme o crescimento da base de cálculo. Seria uma decepção uma tributação proporcional de todos acima dessa faixa de renda.

O 1% mais rico da população brasileira tem renda per capta média em torno de R$ 20 mil, segundo a PNAD contínua do IBGE referente a 2023. Ao considerarmos uma renda per capta média mensal de R$ 50 mil, provavelmente estaremos no conjunto do 0,5% mais rico do país. Em um dos países mais desiguais do mundo, deveria ser inquestionável uma medida como essas, que é claramente redistributiva.

É importante separarmos as discussões sobre a carga tributária e sua distribuição. Independentemente de sermos bem-sucedidos, ou não, na redução da carga tributária, ela tem que ser distribuída de forma justa.

Não se pode perder de vista que a própria EC 132, ao dispor sobre a possível reforma do Imposto de Renda, pontuou que aumentos na arrecadação sobre a renda poderiam ser utilizados para justificar a redução da tributação sobre o consumo e daquela incidente sobre a folha. Esta também é uma medida de redistribuição de carga tributária.

Com isso queremos dizer que o aumento do Imposto de Renda sobre o topo da pirâmide da distribuição de renda se justifica em absolutamente qualquer cenário. Haja ou não reforma administrativa. Haja ou não corte de gastos. Haja desoneração do IRPF até R$ 5 mil ou não. O aumento do Imposto de Renda é uma medida simples de cumprimento da Constituição Federal e da construção de um Sistema Tributário Nacional justo, como explicitamente demanda o seu novo § 3º do artigo 145. Caso sejamos bem-sucedidos em cortar gastos, a redução da carga tributária correspondente deveria vir de cortes no IBS/CBS, ou na tributação da folha, não em alívios tributários para os mais ricos.

O Congresso Nacional e o Orçamento
Temos ouvido muito a fala de que “o Congresso Nacional assumiu o seu papel e a sua relevância em relação ao orçamento público”, como referência ao fato de que a última década testemunhou um crescimento das atribuições de deputados e senadores em relação a decisões de alocação de recursos. Contudo, só gasto não é o orçamento. O orçamento é composto de despesas, mas também de receitas.

O que temos testemunhado é que o Congresso (1) não tem nenhuma ação clara de redução de sua fatia do orçamento, (2) luta contra tornar os seus gastos mais transparentes – a transparência é uma imposição da LRF e do § 3º do artigo 145 da Constituição Federal, e (3) não tem interesse em medidas de equilíbrio orçamentário que o coloque em rota de colisão com a elite do serviço público – que eles integram – ou com a elite econômica – que muitos e muitas deputados e senadores também integram. Esta é a quintessência da austeridade seletiva. É a austeridade desde que não seja feita por mim e que eu não sofra seus efeitos.

Não é uma realidade muito diferente da que encontramos no “mercado” e no mundo dos “analistas”. Como apontamos, o “mercado” quer equilíbrio fiscal, desde que não tenha que contribuir com ele. Seria muito mais coerente se, além de exigir desindexação de benefícios dos X% mais pobres da população, o “mercado” trouxesse para a mesa também estudos para a redução do nosso monumental gasto tributário, ou que o jornalista, fazendo aquela crítica indignada sobre a “crise fiscal”, lembrasse que muitas vezes recebe seus vencimentos via pessoa jurídica, pagando muito menos imposto do que um assalariado com remuneração equivalente.

Como dizem, o privilégio é invisível para quem o possui. O Brasil é um país extremamente desigual e a tributação não foge a esta regra. Austeridade fiscal é claramente um foco dos Estados Fiscais contemporâneos. Contudo, se temos que entregar um orçamento equilibrado, que seja com respeito à Constituição de 1988. O custo do equilíbrio fiscal não pode recair sobre os mais pobres, os servidores públicos das carreiras mais mal remuneradas, os direitos dos aposentados, etc. Ele tem que vir da parcela mais rica da população. Nesse sentido, uma medida como a proposta pelo governo, de desoneração do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, tributando-se aqueles que ganham mais de R$ 50 mil é não só compatível com a Constituição, como realiza o princípio da justiça tributária, especialmente se for implementada com progressividade.


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