Após a inauguração do Departamento de Falência e Recuperação Judicial, que representa os interesses de credores e de devedores nos procedimentos judiciais de insolvência, a equipe tributária do escritório Ferreira e Ferreira passou a acompanhar com maior proximidade as implicações de tais procedimentos no âmbito do Direito Tributário.
A recuperação judicial constitui modalidade de renegociação de débitos exclusivamente perante credores privados[1]. Por conseguinte, o crédito tributário não se sujeita aos efeitos modificativos do plano de recuperação (CTN, art. 187, e Lei de Execução Fiscal – Lei 6.830/80, art. 29).
Entretanto, aprovado o plano de recuperação judicial pela assembleia-geral de credores, o devedor deverá apresentar certidões negativas de débitos tributários, conforme dispõe o artigo 57 da lei que regula a recuperação judicial.
Para regularizar sua situação fiscal, o devedor precisa aderir a um dos parcelamentos eventualmente oferecidos pelas Fazendas Públicas.
No âmbito federal, a Lei 13.043/2014 (que acrescentou o art. 10-A à lei 10.522/2002) estabeleceu uma modalidade especial de parcelamento para empresas em recuperação, possibilitando o pagamento em 84 parcelas mensais e consecutivas.
O artigo 68 da lei de recuperação judicial e artigo 155-A do Código Tributário Nacional determinavam que o parcelamento dos créditos tributários dos devedores em recuperação judicial deveria ser regulado em lei especial.
Assim, a edição da Lei 13.043/14, no rigor do seu art. 43, supriu formalmente a lacuna legal até então existente, no âmbito federal, nos seguintes termos:
“Art. 43. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 10-A:
Art. 10-A. O empresário ou a sociedade empresária que pleitear ou tiver deferido o processamento da recuperação judicial, nos termos dos arts. 51, 52 e 70 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, poderão parcelar seus débitos com a Fazenda Nacional, em 84 (oitenta e quatro) parcelas mensais e consecutivas, calculadas observando-se os seguintes percentuais mínimos, aplicados sobre o valor da dívida consolidada:
I – da 1ª à 12ª prestação: 0,666% (seiscentos e sessenta e seis milésimos por cento);
II – da 13ª à 24ª prestação: 1% (um por cento);
III – da 25ª à 83ª prestação: 1,333% (um inteiro e trezentos e trinta e três milésimos por cento); e
IV – 84ª prestação: saldo devedor remanescente.
1º O disposto neste artigo aplica-se à totalidade dos débitos do empresário ou da sociedade empresaria constituídos ou não, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, mesmo que discutidos judicialmente em ação proposta pelo sujeito passivo ou em fase de execução fiscal já ajuizada, ressalvados exclusivamente os débitos incluídos em parcelamentos regidos por outras leis.
2º No caso dos débitos que se encontrarem sob discussão administrativa ou judicial, submetidos ou não à causa legal de suspensão de exigibilidade, o sujeito passivo deverá comprovar que desistiu expressamente e de forma irrevogável da impugnação ou do recurso interposto, ou da ação judicial, e, cumulativamente, renunciou a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem a ação judicial e o recurso administrativo.
3º O empresário ou a sociedade empresária poderá, a seu critério, desistir dos parcelamentos em curso, independentemente da modalidade, e solicitar que eles sejam parcelados nos termos deste artigo.
4º Além das hipóteses previstas no art. 14-B, é causa de rescisão do parcelamento a não concessão da recuperação judicial de que trata o art. 58 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, bem como a decretação da falência da pessoa jurídica.
5º O empresário ou a sociedade empresária poderá ter apenas um parcelamento de que trata o caput , cujos débitos constituídos, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, poderão ser incluídos até a data do pedido de parcelamento.
6º A concessão do parcelamento não implica a liberação dos bens e direitos do devedor ou de seus responsáveis que tenham sido constituídos em garantia dos respectivos créditos.
7º O parcelamento referido no caput observará as demais condições previstas nesta Lei, ressalvado o disposto no § 1º do art. 11, no inciso II do § 1º do art. 12, nos incisos I, II e VIII do art. 14 e no §2º do art. 14-A.”
O prazo de 84 meses para a quitação de todos os débitos se mostrou insuficiente e completamente dissociada da realidade presente nos processos de recuperação judicial, por ser muito inferior aos parcelamentos usualmente aprovados pelos credores privados e principalmente dissociado dos Programas de Débitos Federais – Refis.
Além disso, a constitucionalidade do art. 43 da Lei 13.043/2014 era duvidosa, pois o seu § 2º impõe renúncia ao direito fundamental de discutir a legalidade dos tributos cobrados.
No particular, quadra destacar as ponderações do Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça[2]:
“[…] De qualquer modo, convém assinalar, desde logo, que a Corte Especial do STJ dispôs que a interpretação literal do art. 57 da Lei de Recuperação e Falências (que exige certidões), em conjunto com o art. 191-A do Código de Tributária Nacional (que exige a quitação integral do débito para concessão da recuperação), inviabiliza toda e qualquer recuperação judicial, e conduz ao sepultamento por completo do novo instituto. Sendo assim, os artigos da LRF e do CTN apontados devem ser interpretados à luz das novas diretrizes traçadas pelo legislador para as dívidas tributárias, com vistas, notadamente, à previsão legal de parcelamentos do crédito tributário em benefício da empresa em recuperação, que é causa de suspensão da exigibilidade do tributo. […]”
A respeito da validade da regra da Lei 13.043/2014, que disponibilizou o parcelamento dos débitos tributários federais para as empresas em recuperação judicial, além dos pontos abordados pelo Ministro Luis Felipe Salomão, cabe destaque especial ao AgRG no CC 136.130/SP, da relatoria do Ministro Antônio Carlos Ferreira;
“[…]O § 2º, por sua vez, deixa claro que, em relação aos débitos que se encontrarem sob discussão judicial, “o sujeito passivo deverá comprovar que desistiu expressamente e de forma irrevogável da impugnação ou do recurso interposto, ou da ação judicial, e, cumulativamente, renunciou a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem a ação judicial. A lei, portanto, obsta o exercício de direito constitucionalmente garantido (art. 5º, XXXV, da CF), impedindo que a empresa discuta seus débitos judicialmente. Em tal circunstância, em tese, mesmo sendo indevido o tributo cobrado pela Fazenda, ou parte dele – o que não é raro -, a empresa estaria compelida a renunciar ao seu direito, o que pode dificultar ou inviabilizar a recuperação econômica da pessoa jurídica. Observe-se que, na hipótese, a sociedade estaria obrigada ao pagamento de quantia indevida à Fazenda Pública, afetando patrimônio indispensável para o seu surguimento. […]”
Pela força dessas ponderações, resta evidente que as exigências do artigo 43 da Lei 13.043/2014, em especial as constantes do seu § 2º, são manifestamente inconstitucionais, pois afrontam o exercício de direito fundamental garantido pela Constituição, ao exigir a inclusão no parcelamento de valores indevidos.
Diante do exposto, fica evidente que a Lei em questão não atendeu materialmente ao comando do CTN (art. 155-A) e da Lei de Recuperação Judicial (arts. 6º, § 7º, e 68) no sentido de positivar um parcelamento especial favorecido dos débitos tributários, permanecendo, assim, inviável a exigência de certidão negativa tributária para a concessão da recuperação prevista no artigo 57 da LRF[3].
Surgiu, contudo, um fato novo. Com efeito, foi sancionada, no último dia 14, a Lei 13.988/20, que regula a transação tributária no âmbito federal.
A lei citada estabelece condições e requisitos para que ocorra a transação tributária, estabelecendo as hipóteses em que ela pode ocorrer.
A transação integra o rol das medidas tendentes a garantir a extinção do crédito tributário, no rigor do artigo 156, inciso III, do Código Tributário Nacional editado no ano de 1966.
Ela está gravada no art. 171 do CTN nos seguintes termos:
“Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário.”
O artigo destacado trata de solução de “litígios” concretos, mediante concessões recíprocas e restritas, com eficiência e agilidade.
A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional regulamentou a transação tributária mediante a Portaria PGFN 9.917/20, cujo artigo 3º, I assim anuncia os objetivos da transação tributária:
“I – viabilizar a superação da situação transitória de crise econômico-financeira do sujeito passivo, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora e do emprego dos trabalhadores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica;”
O inciso destacado é cópia fiel do art. 47 da Lei nº 11.101/2005, que trata da recuperação judicial das sociedades empresárias, o que evidencia que a transação tributária foi idealizada para permitir a negociação dos débitos tributários federais pelas empresas com dificuldades financeiras, inclusive as empresas em recuperação judicial.
Entretanto, no particular, a Lei da Transação Tributária apresenta os mesmos vícios da Lei 13.043/2014, com a previsão de parcelamento em apenas 84 parcelas (art. 11, § 2º, III) e as restrições de direito assim gravadas no seu artigo 3º, ao dispor que a proposta de transação, além de “expor os meios para a extinção dos créditos nela contemplados, estará condicionada, no mínimo, à assunção pelo devedor dos compromissos de”:
“IV – desistir das impugnações ou dos recursos administrativos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação e renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem as referidas impugnações ou recursos; e
V – renunciar a quaisquer alegações de direito, atuais ou futuras, sobre as quais se fundem ações judiciais, inclusive as coletivas, ou recursos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação, por meio de requerimento de extinção do respectivo processo com resolução de mérito, nos termos da alínea c do inciso III do caput do art. 487 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”
Diante desses vícios, assim como se posicionou em face da Lei nº 13.043/2014, certamente, o Poder Judiciário recusará o parcelamento previsto na lei da transação tributária, e continuará apontando ser inviável o cumprimento da exigência prevista no artigo 57 da Lei de Recuperação Judicial.
Assim, nesse ponto, concretamente, não há fato novo em relação à tramitação dos processos tendentes a garantir a recuperação judicial das empresas viáveis, como dispõe o artigo 47 da Lei 11.101/2005.
Antonio Airton Ferreira[4]
Tiago Felix Prado[5]
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[1] STJ, 1ª Seção, AgRg no CC112646/DF, Rel. Min. Herman Benjamim, j. 11/05/2011.
[2] Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência. Teoria e Prática. Editora Forense, 4ª edição, p. 53.
[3] Esse é o entendimento, por exemplo, de João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea, gravado no importante livro que tratou da Recuperação de Empresas e Falência, 3ª ed. p. 383, da Editora Alemedina.
[4] Sócio fundador do escritório. Especialista em Direito Constitucional. Ex-Professor de Direito Tributário e de Planejamento Tributário da PUC-Campinas na Faculdade de Contábeis. Ex-Delegado da Receita Federal de Julgamento em Campinas. Economista, Advogado e Consultor Tributário.
[5] Sócio responsável pelo Departamento de Falência e Recuperação Judicial; Pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV; Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC – Campinas; Ex-professor de Direito Empresarial em cursos de graduação.