Fonte: Jota
Por Flávia Maia
O projeto de reforma tributária proposto pelo governo federal por meio do PL 3.887/2020 trouxe a possibilidade dos contribuintes realizarem o creditamento amplo de um novo tributo a ser criado, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substituiria os atuais PIS e Cofins. Se aprovada, a lei permitirá que os contribuintes aproveitem os valores pagos de CBS em bens e serviços no abatimento da própria contribuição e de outros tributos federais.
No entanto, especialistas ouvidos pelo JOTA defendem que, da forma como está redigido o texto entregue pelo Executivo ao Congresso Nacional no último dia 21 de julho, o creditamento amplo traz dúvidas, o que pode gerar novos contenciosos tributários e tornar a pejotização da mão de obra atraente às empresas.
O benefício do creditamento amplo é um dos triunfos do Ministério da Economia na defesa do projeto e da alíquota de 12% – mais alta do que a cobrança atual de PIS e Cofins. Na apresentação da proposta à imprensa, tanto o secretário especial da Receita Federal, José Tostes, quanto a assessora especial do ministro da Economia, Vanessa Rahal Canado, enfatizaram que não haverá aumento de carga tributária por conta da possibilidade de creditamento.
Há consenso entre os tributaristas que o creditamento amplo e unificado é benéfico, porém, ele precisa ser melhor especificado para evitar disputas entre o fisco e os contribuintes. Os advogados e acadêmicos ouvidos pelo JOTA preocupam-se com o potencial contencioso administrativo e judicial que pode surgir a partir da discussão do que pode ser entendido como bem e serviço.
O receio dos tributaristas é que ocorra com a CBS algo similar às disputas atuais em relação a quais insumos dão direito a crédito no caso de empresas sujeitas ao regime não cumulativo de PIS e Cofins. Segundo dados do Ministério da Economia, o estoque de litígios envolvendo PIS e Cofins é de 71 mil processos na Receita Federal e no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), ou seja, 20% do total. Na Justiça, 25% dos processos com atuação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nos tribunais superiores envolvem as contribuições.
Aluguéis e royalties
Para os especialistas, há dúvidas, por exemplo, se direitos e intangíveis, como aluguéis e royalties, poderiam gerar crédito, uma vez que o artigo do projeto de lei que trata do creditamento fala especificamente de bens e serviços. “Da maneira como foi colocado no projeto, o creditamento parece estar limitado, vai causar dúvida na interpretação do que é bem, do que é serviço e na interpretação do que é esse documento fiscal por meio do qual vai se ter direito a esse crédito”, acredita a advogada Ana Monguilod, professora do Insper e diretora da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF). “Tem-se o risco de chegar à conclusão de uma base larga, ampla, com limitadas possibilidades de creditamento, o que seria incoerente”, complementa.
Na análise de fontes ouvidas pelo JOTA, a raiz do problema do creditamento amplo está na dúvida sobre a incidência da CBS. Os advogados Renata Emery e Alberto Medeiros, sócios do Stocche e Forbes Advogados, entendem que o problema do creditamento nasce com a dúvida sobre o fato gerador da contribuição. “Se as situações como royalties e aluguéis forem tributadas pela CBS, elas vão dar créditos ao adquirente. Se elas não forem, não vão dar crédito. Assim, o problema é anterior. Se elas estão incluídas ou não nas situações em que são tributadas pela CBS”, explica Alberto Medeiros.
Para ele, o artigo 1º limitou a incidência da CBS a bens e serviços, mas o artigo 2º é mais amplo porque faz referência ao decreto-lei 1.598/1977, que traz um conceito de receita maior do que as operações com bens e serviços, gerando, dessa forma, dúvidas sobre a incidência e, consequentemente, sobre o creditamento.
Sérgio André Rocha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aponta que existem contradições no projeto de lei sobre o fato gerador do tributo. De um lado, o artigo 1º afirma que a CBS incide sobre bens e serviços, já pelo artigo 2º, a incidência da CBS seria mais ampla, e recairia sobre a receita bruta. “É como se o artigo 2º tentasse corrigir a impropriedade do artigo 1º. Só que isso já cria a possibilidade de alguém argumentar que da conjugação do artigo 1º com o 2º, eu só posso tributar receita bruta com operações de bens e serviços e jogaria a questão para toda aquela celeuma de interpretar o que é bem e o que é serviço”. Rocha lembra o próprio conceito de serviço ainda não está firme na jurisprudência brasileira.
Para ele, a dúvida sobre o que será tributado vai repercutir no creditamento. “Quando o artigo 9º fala do crédito, ele fala que o que dá crédito é a aquisição de bens ou serviços. Ou seja, o PL criou um fato gerador que pega todo e qualquer fato econômico, seja locação, seja intangível, o que for. Porém, no crédito, ele fala em bens e serviços”, opina Rocha.
“Não tem nenhuma possibilidade do texto sair como está hoje sem gerar contencioso. Não é o mesmo tipo de contencioso, é um contencioso novo, mas, do jeito que está escrito ali, tem contencioso. A gente sabe como funciona a advocacia tributária, é uma advocacia que é muito atenta”, complementa.
O Ministério da Economia respondeu, via nota, que toda aquisição feita pela pessoa jurídica em que haja exigência da CBS dará direito de creditamento por parte da adquirente. Informou ainda que o conceito de bens e serviços não tem qualquer importância para a CBS incidente sobre as operações ocorridas no mercado, pois o fato gerador da contribuição nesse contexto é o auferimento da receita bruta, que independe da classificação do item envolvido na operação como bem ou serviço.
No entanto, a pasta ressaltou que no caso das importações, o conceito de serviços torna-se importante porque o fato gerador da CBS é a importação de bens e a importação de serviços. “Com efeito, já está em curso no Supremo Tribunal Federal discussão acerca do conceito de serviços cabível na legislação tributária e a decisão tomada será integralmente adotada na legislação da CBS”.
Pejotização da mão de obra
Outro problema colateral levantado pelos especialistas em relação ao creditamento é o possível aumento da pejotização da mão de obra pelas empresas. Existe a preocupação do crescimento do interesse das companhias por contratações de Pessoas Jurídicas (PJs) no lugar do trabalhador com carteira assinada, conforme determina a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), uma vez que a CBS paga na contratação de PJ pode gerar crédito, enquanto na contratação via CLT isso não é possível.
“É um estímulo tributário que talvez gere uma questão trabalhista, que ninguém quer mais: a pejotização”, analisa Ana Monguilod.
Na análise de Alberto Medeiros, embora seja provável que a CBS leve a uma nova organização da prestação de serviços por conta do direito a crédito ao tomador, ele acredita que a alteração na lei tributária não será o único fator responsável pelo aumento da pejotização. Ele lembra que existe parâmetros na contratação de pessoas jurídicas tanto na lei trabalhista quanto na legislação fiscal.
“A CBS vai aumentar o apetite do mercado ao tomar serviço de pessoa jurídica porque o prestador do serviço vai poder transferir o direito ao crédito ao tomador do serviço, enquanto o prestador pessoa física, não. No entanto, é preciso prestar atenção às balizas existentes, que o PL do governo não altera”.
O Ministério da Economia informou, via nota, que cabe à legislação trabalhista estabelecer as hipóteses em que o trabalhador deve ser contratado como pessoa física e aquelas em que pode ser contratada uma pessoa jurídica para exercício de determinada atividade. “A reforma tributária não alterará as regras da relação trabalhista entre contratante e contratado”, diz o texto da pasta.
Governo
Durante a apresentação do projeto à imprensa na última terça-feira (21/7), a assessora especial do ministro da Economia, Vanessa Rahal Canado, afirmou que com a CBS não haverá aumento de carga tributária porque as empresas terão ampla possibilidade de creditamento. “No novo sistema tudo dá crédito, não importa se é ligado ao processo produtivo ou não. Fazendo parte da atividade empresarial como um todo, tudo que veio pronto e não foi agregado no processo produtivo do adquirente vai gerar crédito porque, se não, você não vai ter um sistema efetivamente não cumulativo”, explicou.
“O aproveitamento vai ser pleno, integral e imediato”, complementou o secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, na ocasião.
Atualmente, empresas submetidas ao regime do lucro presumido recolhem o PIS e a Cofins pelo sistema cumulativo, sem a possibilidade de tomada de crédito e com uma alíquota de 3,65% (3% de Cofins e 0,65% de PIS). As empresas que estão submetidas ao pagamento do IRPJ pelo regime do lucro real pagam, em geral, o PIS e a Cofins pela sistemática da não cumulatividade a uma alíquota de 9,25% (7,6% de Cofins e 1,65% de PIS) e podem fazer uso de créditos.