Por: Ludmila Mara Monteiro de Oliveira e Semíramis de Oliveira Duro
Fonte: Conjur
Nos últimos dias de 2024, em contumaz momento em que voltamos os olhos para o passado para repensar o futuro, nesta Direto do Carf festejávamos a publicação do Decreto nº 12.340, de 23 de dezembro de 2024, enaltecendo seu potencial transformador na dinâmica de julgamentos do Carf, porquanto tornou possível o pagamento de remuneração extra decorrente de carga processual extra dos Conselheiros não-fazendários.
Como adiantamos na oportunidade, os desafios hercúleos a serem enfrentados em 2025 seriam o da redução da temporalidade dos processos e o da redução do acervo processual. Apesar de serem grandes as dificuldades, começamos este ano com a certeza de que as mudanças implementadas fariam com que o Carf honrasse primorosamente sua missão de “assegurar à sociedade imparcialidade e celeridade na solução dos litígios”. Passados poucos meses enfrenta o órgão obstáculo que carrega direto impacto nos principais objetivos do Carf para 2025: o atual movimento paredista das auditoras e dos auditores da Receita Federal.
Façamos uma breve recapitulação.
Mandamentos legais e constitucionais, a missão do Carf e as boas práticas internacionais
A redução da temporalidade e do acervo de processos, a garantia da qualidade técnica das decisões, e a ampliação do direito de defesa e do acesso ao Carf são alguns dos mais importantes objetivos do órgão. E diferente não poderia ser.
A nossa Carta Constitucional, resultado de um processo de luta pela redemocratização, demanda do contencioso administrativo fiscal obediência a uma série de princípios, dentre os quais destacamos: 1) o do contraditório e da ampla defesa, 2) o da legalidade; 3) o da segurança jurídica; 4) o da motivação das decisões, 5) o do duplo grau de cognição; e, não menos importante, 6) o da duração razoável do processo.
Há dois anos, a OCDE (Organização para Cooperação para o Desenvolvimento Econômico), em carta enviada ao atual ministro da Fazenda, pontuou que
“outras tendências observadas no processo de recurso tributário no Brasil – como a duração do processo de recurso tributário e a possibilidade de empregar estratégias de atraso adotadas por alguns contribuintes por meio da apresentação de recursos e revisões, sem serem obrigados a fazer qualquer pagamento antecipado de impostos ou garantias – significam que este processo apresenta um desafio fiscal significativo para o país. Além disso, esse processo pode servir como um incentivo não intencional para implementar estratégias de atraso no pagamento facilitadas pelo sistema atual. Uma análise mais detalhada e uma reforma podem ser contempladas para acelerar o processo de recurso tributário a fim de contribuir para a certeza tributária, garantindo que esse processo melhor atinja os objetivos relevantes de revisão administrativa e acesso acelerado ao processo de revisão judicial independente”.
Reduzir o tempo de tramitação dos processos é crucial para não só assegurar a obediência aos princípios constitucionais que regem o processo administrativo tributário, mas também para guardar alinhamento às boas práticas internacionais e respeitar a determinação legal estampada no artigo 24 da Lei n° 11.457/2007. Para tanto, desde 2023, várias medidas têm sido implantadas, que levaram ao resultado histórico de R$ 1 trilhão em processos julgados, no período compreendido entre janeiro de 2023 e novembro de 2024.
Passo inicial: um novo Regimento Interno para um novíssimo Carf
A primeira grande medida para a eficiência e melhoria da gestão do acervo de processos foi a edição da Portaria n° 1634/2023, cuja vigência foi 5 de janeiro de 2024, dando ao Carf um novo Regimento Interno.
O objetivo do Novo Ricarf foi dar maior celeridade e transparência aos julgamentos no Carf, após a detecção de inconformidades, tais como: (1) o elevado tempo médio de julgamento em turmas ordinárias; (2) o grande acervo de processos; (3) o crescente número de decisões judiciais para determinação da realização imediata de sorteios ou mesmo de julgamento em 30/60/90 dias; (4) o trâmite lento para aprovação de súmulas e (5) a necessidade de incorporação de novas tecnologias.
As principais mudanças do Novo Ricarf podem ser assim sumarizadas:
(1) Classificação das modalidades de reunião em síncronas e assíncronas. Nas síncronas (artigo 92), os conselheiros participam de maneira simultânea nas sessões de julgamento, na forma presencial, quando todos os conselheiros comparecerem ao mesmo espaço físico; não presencial (por videoconferência) ou híbrida, quando houver participação dos conselheiros tanto de forma mista.
(2) Simplificação de procedimento para aprovação de súmulas, nos termos dos artigos 124, 125 e 126, com novidades, tais como o enunciado de súmula proposto por turma ordinária para apreciação da Câmara Superior de Recursos Fiscais a quem compete a matéria.
(3) Novas atribuições de presidentes de Turma, Câmara e Seção, conforme artigos 58 a 61, dentre as quais se incluem: determinar, de ofício ou mediante proposta do conselheiro relator, a realização de diligência; o não conhecimento de recurso de ofício de valor abaixo do limite estabelecido pelo ministro de Estado da Fazenda; declarar a renúncia à instância administrativa, solicitada expressamente pelo sujeito passivo, quando se tratar de concomitância de discussão administrativa com processo judicial, relativa à totalidade do crédito tributário do processo; declarar a intempestividade de recurso voluntário, salvo se este contiver preliminar de tempestividade; dentre outras.
(4) Alteração da competência das Turmas Extraordinárias para julgar, preferencialmente, recursos voluntários relativos à exigência de crédito tributário ou de reconhecimento de direito creditório, até o valor em litígio de 2 mil salários-mínimos.
(5) Ausência de distinção entre conselheiros titulares e suplentes, conforme o artigo 80, o que garante a paridade.
(6) Aumento do número de mandatos dos conselheiros (artigo 80, § 2º), o que reduz a rotatividade e colabora para a estabilidade da jurisprudência.
(7) Composição de turmas ordinárias com seis julgadores e aumento do número de turmas julgadoras.
Mudanças estruturais do Carf em 2024
Além do início da vigência do Novo Ricarf, o ano passado foi marcado por importantes atos:
(1) A reformulação de Turmas de Julgamento, cuja gênese é o artigo 2°, II, do Ricarf. Assim, a Portaria SE/MF n° 888/2024 editou a composição das Câmaras Superiores, das 24 turmas ordinárias e das seis turmas extraordinárias.
(2) A criação das Turmas especializadas aduaneiras, conforme artigo 46, do Ricarf e Portaria Carf nº 627, de 18 de abril de 2024.
(3) Implantação do Plenário Virtual, com início de funcionamento em agosto de 2024, pelos seguintes atos normativos:
– Portaria Carf nº 1.239/2024: responsável por aprovar o Sistema Eletrônico de Julgamento – Plenário Virtual e o Sistema de Acompanhamento do Plenário Virtual; e,
– Portaria Carf nº 1.240/2024: responsável por regulamentar os procedimentos do Sistema Eletrônico de Julgamento – Plenário Virtual, a realização de reuniões e sessões de julgamento e a realização de audiências.
(4) Aprovação de 30 novas súmulas das três turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais e do Pleno, com regulamentação de procedimento pela Portaria Carf nº 414, de 12 de março de 2024.
(5) Edição da Portaria MF n° 1.918, de 6 de dezembro de 2024, que criou as terceiras e quartas turmas extraordinárias da 1ª Seção, 2ª Seção e 3ª Seção de Julgamento do Carf, com integrantes da CSRF, para que a eventual baixa de estoque nas Câmaras Superiores abra espaço para o julgamento de recursos de ofício e recursos voluntários nas referidas turmas extraordinárias.
Todas as medidas adotadas contribuem, direta ou indiretamente, para que a meta de redução da temporalidade dos processos e diminuição do acervo fossem alcançadas.
Perspectivas para 2025
Com a pavimentação do caminho, em 2024, para que a tão-sonhada celeridade fosse alcançada, em 2025, ano que marca o centenário do Carf, outras medidas foram arquitetadas. Destacamos as seguintes:
(1) Ampliação da garantia de defesa do contribuinte, em especial as empresas de pequeno porte e as pessoas físicas e a redução de custos para contribuintes e patronos para sustentação oral, com a utilização do Sistema de Acompanhamento do Plenário Virtual – SAPVI pela maioria das turmas.
(2) Desenvolvimento do sistema Inteligência Artificial em Recursos Administrativos (Iara) como assistente virtual do Conselheiro na pesquisa de legislação e jurisprudência e elaboração de relatórios e decisões.
(3) Implementação e regularidade na realização das quatro sessões extraordinárias de julgamento, quando comprovada a assunção de acervo processual extraordinário pelo Conselheiro representante dos Contribuintes, conforme prescrições do Decreto nº 12.340/2024), da Portaria MF n° 278/2025 e da Portaria Carf n° 404/2005.
(4) Manutenção dos índices de redução do acervo e da temporalidade dos processos decorrentes do conjunto das medidas já citadas.
(5) Aprovação de outros verbetes sumulares.
(6) Preparação do Carf para receber o contencioso da reforma tributária, o julgamento dos casos de CBS pela 3ª Seção de Julgamento.
(7) Investimento em maior capacitação técnica dos julgadores.
Impacto da atual greve dos auditores fiscais da RFB
Sendo o Carf um colegiado paritário, cuja metade dos julgadores é indicada pela Receita Federal, é digna de apreensão os impactos que a paralisação da categoria geram — e poderão gerar — no funcionamento do órgão. Em nota oficial, a Federação das Associações Comerciais e Empresariais do Estado de Minas Gerais (Federaminas), reconheceu que
[a] morosidade histórica no julgamento administrativo dos litígios tributários e o elevado acervo de processos no Carf exigiu a implementação de medidas, no último biênio, para melhor alinhamento com as boas práticas internacionais. Há fundamento para que a demora nas tratativas das demandas apresentadas pelos auditores fiscais torne-se vã a tentativa de tornar o contencioso administrativo fiscal realmente eficiente [9].
Indubitável o essencial o papel desempenhado pela Receita na administração dos tributos federais, do controle aduaneiro e de suas inúmeras insubstituíveis atribuições. E, no âmbito do Carf, é notória a importância, dedicação e conhecimento técnico dos auditores fiscais que ali atuam.
As centrais sindicais que possuem assento no órgão [10], em movimento encabeçado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), não quedaram inertes. Do mesmo modo que intercederam, em 2023, para que houvesse abertura de diálogo para uma melhoria na remuneração dos conselheiros e conselheiras indicados por elas e pelas confederações patronais [11], tampouco se furtaram honrar seu estratégico papel neste impasse que prejudica não só o Carf, como a sociedade brasileira como um todo. Na manifestação, afirmaram que
“[s]endo a tributação a fonte precípua para o financiamento dos inúmeros direitos constitucionalmente resguardados, grande é a preocupação com os impactos gerados pela paralisação das atividades desempenhadas por auditoras e auditores fiscais. O Carf, enquanto instância essencial do Ministério da Fazenda, não pode ter suas atividades obstadas sem consequências concretas para a capacidade de financiamento estatal e para o cumprimento dos objetivos de construção de uma nação que pretenda ser deveras livre, justa e solidária.
Conclamaram, ao final, que
[c]om união pretendemos reconstruir um futuro pautado na equidade. Para que valores caros, como o da estabilidade econômica do país e o da valorização do trabalho, sejam preservados, é preciso haver diálogo com apresentação de soluções concretas.
Confiamos que essa agenda será tratada com a seriedade e a urgência que a situação exige, garantindo que o Brasil siga no caminho da união, do crescimento e da inclusão social.”
A finitude dos recursos públicos e das dificuldades enfrentadas no atual cenário econômico nacional e internacional são notórias; todavia a categoria aponta que, do Poder Executivo Federal, são os únicos servidores públicos que não foram contemplados com o reajuste do vencimento básico, na MP nº 1286/2024.
Imperioso que se abra o diálogo e que seja célere a tratativa da demanda apresentada pelos Auditores-Fiscais da Receita Federal, para assegurar o pleno funcionamento do Carf, mas também de toda a Administração Tributária Federal.
O que esperamos para o centenário
Em setembro deste ano o Carf completará cem anos de história. Coletivamente, esforços têm sido empreendidos esforços para constante aprimoramento do órgão e de sua gestão, a fim de devolver à sociedade julgamentos técnicos, céleres e imparciais. Cremos que, de forma conjunta, será possível encontrar uma solução para o impasse que põe em risco o pleno funcionamento do Carf e de toda a administração tributária e aduaneira de nossa nação.
Com o diálogo entre as partes envolvidas, oxalá possa o Carf iniciar o seu próximo século agregando celeridade à sua notória excelência no julgamento dos litígios tributários e aduaneiros.
*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.