Fonte: JOTA
Por: João Victor Gomes, Roberta Feiten, Ronaldo Kochem
No mês em que o Código de Processo Civil (CPC) completa dez anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) encontra-se em vias de finalizar um julgamento sobre um relevante tema processual que não se encontra expressamente previsto na lei: a litigância predatória. A ausência desse termo no CPC, no entanto, não significa que o código nada disporia a respeito do fenômeno.
Considerando o rico conjunto de normas por meio das quais a lei regula a distribuição de atividades no processo e estabelece pautas de conduta de quem participa do processo, há pouco espaço para uma lacuna normativa a respeito da litigância predatória.
Pelo contrário, várias normas processuais expressas são incompatíveis com condutas fraudulentas, temerárias e frívolas, realizadas para alcançar finalidades extraprocessuais de constrangimento ou prejuízo da parte adversa e que ultrapassam os efeitos diretos da satisfação do direito material deduzido em juízo. Assim, não deveria ser objeto de real controvérsia aquilo que se pretende evitar.
Contudo, o tema adquire maior relevância quando à conduta desviante da parte é somado o fenômeno da litigância de massa, visto que, em escala, as condutas passam a ser ainda mais lesivas[1]. Daí a relevância de que o STJ prossiga com o julgamento do Tema Repetitivo 1.198[2], que trata do exercício dos poderes judiciais de direção do processo para reprimir a litigância predatória.
Os recursos especiais do Tema Repetitivo 1.198 foram interpostos contra acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) que julgou um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) instaurado sobre a “necessidade de a parte autora apresentar documentos atualizados solicitados pelo magistrado para fins de recebimento da petição inicial”.
No julgamento, o IRDR foi solucionado para fixar a tese de que “[o] juiz, com base no poder geral de cautela, nos casos de ações com fundado receio de prática de litigância predatória, pode exigir que a parte autora apresente documentos atualizados, tais como procuração, declarações de pobreza e de residência, bem como cópias do contrato e dos extratos bancários, considerados indispensáveis à propositura da ação, sob pena de indeferimento da petição inicial, nos termos do art. 330, IV, do Código de Processo Civil”.
Seus fundamentos invocam normas jurídicas do CPC a respeito do princípio da colaboração, dos poderes do magistrado na direção formal e material do processo, incluindo-se o poder geral de cautela. Nesse horizonte de ideias, orientando sua conduta para que o processo alcance, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva, parece fora de dúvidas que os juízes podem pedir esclarecimentos sobre o material apresentado pelas partes, solicitar ajustes e devem prevenir as partes a respeito dos riscos ao êxito de suas postulações pelo uso inadequado do processo[3].
O que o acórdão recorrido tem de especial, assim por dizer, é o contexto em que se está afirmando ser possível exercer os poderes de direção do processo: o contexto de um fundado receio da litigância ou advocacia predatórias. Mas o que vem a ser a litigância predatória?
No Brasil, o termo litigância predatória já tem sido utilizado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) há anos para designar uma abusividade específica do direito de petição com efeitos anticompetitivos[4]. Invocando a experiência norte-americana de punição da prática de sham litigation e uma discussão iniciada nos anos 1980, o Cade reconhece a limitação do direito de petição em situações que se revelam meramente protelatórias, sem base legal, com vistas a prejudicar um concorrente ou a ordem concorrencial como um todo[5].
Aos poucos a litigância predatória”foi ganhando outros contornos, sendo o termo empregado em um sentido mais geral, sem vinculação aos efeitos anticompetitivos do sham litigation. Veja-se, como exemplo, a evolução da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), pela qual são julgadas improcedentes ações que visam a compelir os réus a exibirem documentos não previamente requeridos administrativamente, com o reconhecimento do “abuso do direito de demandar”, definido pela “indústria da litigância predatória, da banalização das demandas, com fins escusos, que tanto prejuízo causa ao Judiciário e à coletividade dos jurisdicionados”[6].
Também passaram a ser identificados como litigância predatória casos de ações declaratórias de inexistência de débito, redigidas de modo genérico e com a alegação de mero desconhecimento da dívida[7]. Finalmente, o TJSP também entende como um indício de litigância predatória, por possível fraude relativa à representação processual, caso no qual a parte autora, intimada pessoalmente, não apresente a procuração original em cartório conforme determinação judicial[8].
O que se vê é uma grande diversidade de condutas que são tratadas sob o termo litigância predatória, o que coloca um desafio para o julgamento do STJ. Afinal, decidir sobre os poderes judiciais para prevenir ou remediar a litigância predatória sem a definir pode representar uma solução incerta para um problema errado.
Daí a importância de contribuições tais como a da ANNEP[9] ao julgamento do Tema Repetitivo 1.198, que afirma que, antes de o STJ definir, “de modo paradigmático, o uso de medidas como a exigência de procuração atualizada e de outros documentos nos casos em que se identificar tratar de litigância predatória”, seria “crucial definir quais características qualificam um conjunto de ações como reflexo de uma litigância predatória”, propondo uma definição de características típicas dessa prática[10].
Nesse sentido, também vale recordar as pertinentes críticas do jurista Michele Taruffo, que destacava o risco de arbitrariedade na onda moralizante que procurava justificar, na Itália, o controle de comportamentos tidos por abusivos, com base em princípios vagos e genéricos[11]. Deve-se também evitar o uso excessivo do argumento do abuso de direito[12].
Nessa linha de ideias, é compreensível a postura de cautela do ministro Humberto Martins ao apresentar uma tese parcialmente divergente à tese defendida pelo ministro Moura Ribeiro, para vincular a exigência de documentos de identificação e elementos probatórios àqueles “previstos na lei processual”. Embora não concordemos com a tese parcialmente divergente[13], parecendo-nos adequado o caminho do rol exemplificativo (tal como trilhado pelos Anexos B e C da Recomendação 159 do CNJ, de 23/10/2024[14]), é importante a lembrança de que é necessário ter cautela no exercício do poder geral de cautela.
O que propomos é um passo anterior: ante as diversidades de condutas que comumente são classificadas como litigância predatória e a ausência de uma definição corrente para o termo, que o STJ adote expressamente uma definição do termo, para que seja preservada a segurança do procedimento judicial e das garantias processuais. Essa definição pode ser feita com a especificação de conceitos já usuais como o de abuso dos direitos de ação ou de defesa, em que o direito constitucionalmente garantido é exercido em contrariedade com a boa-fé.
Alternativamente a esse caminho definitório, então que o tribunal opte por decidir de modo mais específico. E, ao invés de decidir sobre os poderes judiciais a serem exercidos na classe mais genérica de casos de litigância predatória, decida sobre a classe específica de ações que são ajuizadas sem provas mínimas capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas. Essa solução, ao passo que confere maior certeza para a solução a ser definida pelo STJ, curiosamente é mais geral e eficiente.